SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT 202 E TRIBUTAÇÃO DAS MERCADORIAS RECEBIDAS EM BONIFICAÇÃO

No fim de 2021, veio a lume mais um capítulo da antiga discussão a respeito da tributação, pelas contribuições para o PIS e Cofins, no recebimento de mercadorias em bonificação por estabelecimentos comerciais.

Trata-se da Solução de Consulta Cosit nº 202, publicada no dia 24/12/2021, por meio da qual a Receita Federal reafirmou o seu entendimento [1] no sentido de que, quanto não constarem da mesma nota fiscal de venda, as “bonificações em mercadorias entregues gratuitamente, a título de mera liberalidade, sem vinculação a operação de venda, configuram descontos condicionais, devendo, por isso, ser consideradas receitas de doação para a pessoa jurídica recebedora dos produtos (donatária)”.

Afirmou, ainda, neste caso em descompasso com posicionamento anterior [2], que não seria possível o desconto de créditos não cumulativos das contribuições na revenda das mercadorias recebidas em bonificação, porquanto não teria ocorrido o pagamento das contribuições em etapa anterior por outra pessoa jurídica, conforme determina a legislação tributária federal.

Para a administração tributária, deve prevalecer o conceito exarado no Parecer CST nº 1.386/1982, segundo o qual bonificação significa, em síntese, “a concessão que o vendedor faz ao comprador, diminuindo o preço da coisa vendida ou entregando quantidade maior que a estipulada”. Como diminuição do preço da coisa vendida também se pode considerar as parcelas redutoras do preço de venda, que, “quando constarem da nota fiscal de venda dos bens e não dependerem de evento posterior à emissão desse documento”, são definidas como descontos incondicionais.

Esse entendimento, é preciso salientar, vem prevalecendo majoritariamente no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), inclusive por decisões da Câmara Superior do órgão [3].

Assim, tendo em vista o entendimento dos órgãos de fiscalização (RFB) e do órgão responsável pelo julgamento administrativo da questão (Carf), é fundamental que os varejistas redobrem a atenção no tratamento das bonificações recebidas em mercadorias, sobretudo diante de fiscalizações cada vez mais comuns sobre o tema.

Assim, algumas ponderações merecer ser feitas.

É sabido que a prática comercial impõe, quase sempre, a entrega de mercadorias em bonificação, pelos fornecedores aos varejistas, em notas fiscais distintas das notas fiscais de venda das mercadorias e isso, por si só, não pode descaracterizar a natureza de desconto incondicional das mercadorias recebidas em bonificação.

O primeiro equívoco no entendimento da Receita é de que as mercadorias recebidas em bonificação pelos varejistas seriam decorrentes de doações de fornecedores.

Ora, o Código Civil, em seu artigo 538, define doação como o contrato em que uma pessoa, “por liberalidade”, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra. A doação é contrato unilateral, simplesmente consensual e gratuito. Unilateral, porque somente o doador contrai obrigações. É “contrato pelo qual uma das partes se obriga a transferir gratuitamente um bem de sua propriedade para patrimônio da outra, que se enriquece na medida em que aquela empobrece” [4].

A fundamentação fiscal nos parece bastante forçada e, evidentemente, ilegal.

Na relação comercial entre fornecedor e varejista não há qualquer ato de liberalidade, de gratuidade ou de generosidade. Muito pelo contrário, a essência é de uma relação comercial e onerosa, sendo as bonificações concedidas neste contexto, como meio de fortalecimento das práticas comerciais.

Ao contrário do entendimento simplista da Receia, a atividade varejista não se limita a simples negócios jurídicos de compra e posterior revenda de bens e mercadorias. Nesse segmento, o mercado, com muita frequência, se vale de instrumentos de negociação entre os varejistas e seus fornecedores, de um lado com a finalidade de redução de custos de aquisição de estoques e, do outro, com o fortalecimento das relações comerciais, de modo a fidelizar os compradores.

É justamente esse caso das mercadorias fornecidas em bonificação, que, apesar de configurarem “vantagens econômicas”, estão sempre relacionadas e umbilicalmente vinculadas aos contratos de compra e venda de mercadorias celebrados, ainda que tacitamente, entre varejistas e fornecedores.

Compõem o preço de aquisição das mercadorias para revenda, reduzindo-os, contudo. Vale dizer: ainda que a legislação estabeleça a exclusão apenas dos descontos incondicionais da base de cálculo das contribuições, não se pode tributar como receita algo que não é receita ou mesmo desconto, mas uma “redução de custos” do estoque.

Nesse compasso, as bonificações devendo ser tratados como redutores de custos, e como tal devem ser reconhecidos à conta de resultado ao final do período, se o desconto corresponder a produtos já efetivamente comercializados, ou à conta redutora de estoques, se o desconto referir-se a mercadorias ainda não comercializadas pela revendedora.

É isso que se extrai das normas contábeis, como determina o item 11 do Pronunciamento Técnico nº 16, aprovado pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (“CPC”), segundo o qual “o custo de aquisição dos estoques compreende o preço de compra, os impostos de importação e outros tributos (exceto os recuperáveis junto ao fisco), bem como os custos de transporte, seguro, manuseio e outros diretamente atribuíveis à aquisição de produtos acabados, materiais e serviços. Descontos comerciais, abatimentos e outros itens semelhantes devem ser deduzidos na determinação do custo de aquisição”.

Ao obter uma “redução de custos” na aquisição de uma mercadoria, mediante o recebimento de bonificações, a recebedora não aufere qualquer receita. A vantagem se concretizará apenas no momento da revenda dos estoques, cujo custo de aquisição restou reduzido pelas bonificações concedidas, que aumentará o resultado da empresa revendedora, implicando aumento da carga tributária das contribuições para o PIS e Cofins, tendo em vista o maior valor agregado da operação.

Por outro lado, não é demais reafirmar que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 606.107/RS, decidiu que o conceito jurídico de receita é distinto do conceito contábil. O conceito jurídico de receita, para fins de incidência das contribuições, é o ingresso de recursos financeiros no patrimônio da pessoa jurídica, em caráter definitivo, proveniente dos negócios jurídicos que envolvam o exercício da atividade empresarial, que corresponda à contraprestação pela venda de mercadorias, pela prestação de serviços ou pela cessão onerosa de bens e direitos a terceiros aferido instantaneamente pela contrapartida que remunera cada um desses eventos.

Portanto, nosso entendimento é no sentido de que o recebimento de mercadorias em bonificação não pode atrair a incidência das contribuições para o PIS e da Cofins, em qualquer circunstância, sobretudo quando possível comprovar a vinculação das bonificações às operações de compra realizadas.

Nessa linha, o fornecimento das bonificações em notas fiscais distintas, pensamos, não descaracteriza a sua natureza de redução de custos. Alguns elementos probatórios podem demonstrar tal vinculação, como, por exemplo, pedidos de compra, emissão das notas fiscais na mesma data e em sequência, notas fiscais com produtos idênticos ou similares, mesmo transportador e frete de aquisição, dentre outros.

Sendo assim, em razão do posicionamento restritivo da Receita Federal, atualmente acolhido pelo Carf, o melhor caminho para as empresas varejistas se protegerem contra essa ilegal exigência é o judicial, observadas, obviamente, as particularidades de cada caso.

[1] Solução de Consulta COSIT nº 291/2017, com efeito vinculante a toda a administração tributária federal.

[2] Solução de Consulta DISIT/SRRF04 Nº 4007, DE 22/04/2020.

[3] Acórdão 9303-003.515, julgado em 15/04/2016.

[4] Orlando Gomes. Contratos, São Paulo: Grupo Ed. Forense. 2009. Pág. 253.

FONTE: Texto publicado originalmente no ConJur: https://www.conjur.com.br/2022-mar-13/arrieiro-elias-solucao-consulta-cosit-2022021